ou
DAS ESTRANHAS PROVAS DE AMIZADE
Eram quatro. Talvez no princípio fossem mais. Agora eram quatro e bebiam à indiferença do mundo. Ou será que bebiam a indiferença do mundo. Agora não faz diferença. O que importa é que eram quatro e bebiam num círculo risonho e um pouco histérico no meio das gentes. E as gentes ora os designoravam por consideração ou interesses. E os garçons corriam o vinho e os copos nunca esvaziavam. Não para aqueles quatro. A festa terminou com as pequenas vitórias e as pequenas derrotas. Com os pequenos tumultos e alguns insultos. Com rimas sem graça e pessoas caindo.
A avenida parecia deserta. Estava. Numa Porto Alegre de Bienal e Casa Cor, pouco antes da Feira do Livro, com seu milhão e pouco de habitantes supostamente eriçados de cultura, a coisa estava deserta. E o carro estava longe. Principalmente para padrões ébrios de caminhada. Eram três mulheres e um homem, aqueles quatro. Ou duas mulheres e um casal, para que fique mais claro. O casal ia de carona. E o carro estava longe, balançando além das escotilhas dos óculos. E a mulher carona cai, rola e ri na avenida imunda. Leva junto o casal. Quatro pernas de bailarina escondidas sob duas meias saltam e inverte o sentido da saia, uma calça social tem um fio puxado. Riem na avenida imunda entre os arranhões e os hematomas que só serão sentidos nos dias que virão. O casal se levanta. O casal a levanta. Com cuidado abrem a porta e instalam a mulher carona, cinto e tudo o mais. O carro parte em direção a um bar como cabe aos automóveis conduzidos por bêbados contentes fazer.
No meio do caminho tinha um Camaro. Tinha um Camaro no meio do caminho. E o Camaro, vermelho, 1968, placa preta de colecionador, pertence ao ex-namorado da mulher motorista. Estava estacionado na frente de um bar. Mas não do bar destino daqueles quatro. Estava na frente de um muito fechado e poluído de ar-condicionado e publicitários. E de malditos advogados bebendo seus drinques flamejantes. Optaram por ficar de pé sobre a boca de lobo fétida da esquina, fazendo suas cervejas render com goles das bebidas de outros. E a mulher carona provou que fêmeas também são lascivas só por ser lambendo a nuca de um conhecido que passava. Os três demais riram, olhos atentos para que nada passasse mais do limite. Existe sempre um limite para o quanto uma pessoa considerada moderadamente sã pode se arrepender numa manhã seguinte. Principalmente quando já se acumulou um certo número de milhas no cartão das manhãs seguintes. A lambida estava de bom tamanho. Novos goles. Trinta anos bebendo e ainda caindo na besteira divertida de misturar vinho, cerveja, whisky e, bom, eles não hão de lembrar o nome de todas as coisas que beberam de copos amigos, interessados ou interesseiros naquela noite. Os não-fumantes acenderam cigarros. Era hora de partir. A mulher carona não estava muito bem. Mas, antes, a mulher queria ir ao banheiro.
entretanto
Ela decidiu que o faria depois, em um local mais adequado. O carro com os quatro deu algumas voltas. O carro com os quatro reencontrou seu caminho de ida. O carro com os quatro estacionou em fila dupla. O carro com os quatro ao lado do Camaro vermelho 1968 placa preta de colecionador. E a mulher carona desembarcou. E a mulher carona apoiou o braço esquerdo na janela do Camaro vermelho1968 placa preta de colecionador. E a mulher carona enfiou o dedo direito dentro da boca. E a mulher carona acertou o trinco da porta do motorista do Camaro vermelho 1968 placa preta jóia máxima da coleção do ex-namorado de sua amiga. Os quatro partiram.
Conhecemos nossos melhores amigos quando enfiam o dedo na goela por nós.